28 de julho de 2017

AS PARTILHAS

"Eu estava de calção de banho, os pés sujos de areia e ainda molhado, quando soube que aquelas imagens perturbadoras existiam."
Bruno Paes Manso - Ed 125 | Fev 2017 _Anais da violência

Eu estava sentada no meu gabinete, perna traçada há horas - trabalho sempre de perna traçada, a estrangular a veia safena - a tratar de um assunto delicado. O assunto mais delicado para se tratar, logo a seguir à organização das exéquias de um defunto, é, como todos sabemos, as partilhas. 
As partilhas têm-me consumido horas sem fim, grandes papos debaixo dos olhos, noitadas que são horas extra e também muito ordinárias, porque me obrigam a compreender o que é feito de uma determinada pessoa quando chega o momento de fazer partilhas. As pessoas perdem-se, é verdade. Não é aquele perder como o doente de Alzheimer, que encontra a porta aberta e se perde todo - não. É a dignidade que se perde, a personalidade, a bonomia, a humildade. Perde-se todo mas é por dentro, e nós ficamos ali a ver as entranhas fétidas do herdeiro, espalhadas pelo chão, e o coração que antes lhe batia no peito é agora um desperdício morto, igual aos que os mecânicos usam no bolso das calças.
A minha teoria é que as pessoas vivem as vidas desejando, e quando há uma réstia de possibilidade de terem finalmente alguma coisa, mesmo que dividida com a morte, que não leva nada mas deixa o herdeiro já morto por dentro, as pessoas agarram-se a tudo, até às coisas que nunca tinham notado existir, como se estivesse ali o último fôlego da vida. 
Um dia, quando espreitam para dentro do caixão e decidem destapar a cara daquele que já não vê, e percebem - com um alívio que pode ser medido pelo volume da gargalhada que lançam no meio do cortejo, ou pelo peidinho subtil no WC da casa mortuária - que a palavra de ordem é guerra, vão à guerra.
E perdem tudo.
É assim que ando há demasiado tempo.
Em guerra.
Perdendo as horas ganhando a vida.

Mas afinal eu estava ali sentada no meu gabinete, e nem sequer vos ia falar destas partilhas.
Ia falar-vos da PIAUÍ e partilhar uma matéria.
Eu adoro a revista paulistana Piauí. Ela infelizmente não se vende em Portugal, ma tenho por sorte alguém que partilha as matérias mais interessantes comigo. 
A matéria é extensa (umas 4 páginas) e pesada; é muito violenta, mas é como tudo na  vida. 
Quem não pode arreia.
E o saber só ocupa o lugar deixado pela ignorância.

“Caralho, vocês se foderam, seus bucetas! Primeiro de janeiro. Tá ligado quem manda nessa porra aqui?!”

24 de julho de 2017

SUBSTITUIÇÃO



Kayleigh

Do you remember chalk hearts melting on a playground wall
Do you remember dawn escapes from moon washed college halls
Do you remember the cherry blossom in the market square
Do you remember I thought it was confetti in our hair

By the way didn't I break your heart?
Please excuse me, I never meant to break your heart
So sorry, I never meant to break your heart
But you broke mine

Kayleigh is it too late to say I'm sorry?
And Kayleigh could we get it together again?
I just can't go on pretending that it came to a natural end

Kayleigh, oh I never thought I'd miss you
And Kayleigh I thought that we'd always be friends
We said our love would last forever
So how did it come to this bitter end?

Do you remember barefoot on the lawn with shooting stars
Do you remember loving on the floor in Belsize park
Do you remember dancing in stilettos in the snow
Do you remember you never understood I had to go

By the way, didn't I break your heart?
Please excuse me, I never meant to break your heart
So sorry, I never meant to break your heart
But you broke mine

Kayleigh I just wanna say I'm sorry
But Kayleigh I'm too scared to pick up the phone
To hear you've found another lover
To patch up our broken home

Kayleigh I'm still trying to write that love song
Kayleigh it's more important to me now you're gone
Maybe it will prove that we were right
Or ever prove that I was wrong

Marillion - Kayleigh (Original Version) - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=l6p09jqRLp8
QUEIRAM POR FAVOR SUBSTITUIR A PALAVRA KEIYLEIGH
POR UVA PASSA


Hoje comemora-se as 500 mil visitas aqui do blog, e era giro... se... enfim... 
Obrigada meus amores.
Por tudo.
Um abraço.

20 de julho de 2017

É SINISTRO

[Ou apenas coincidência?]

É uma pergunta assaz pertinente quando falamos em relações humanas.
Ontem passei os olhos numa publicação online que dava conta do 'casamento' entre dois irmãos e do nascimento para breve do filho de ambos.
Torci logo o nariz e lancei as culpas imediatamente para os pais que não souberam ensinar os seus filhos que aquilo de brincar aos médicos é muito giro, a criançada aprende imenso, mas convém que entre irmãos a relação não passe de médico-recepcionista, ou médico-outra coisa qualquer, porque depois a coisa pode descambar e acabar assim, com a conclusão de que o pai da criança é afinal o tio da criança, irmão da mãe, filho do mesmo pai.
Mas que não, que se se conheceram depois, já crescidos, quando um deles se lembrou de querer conhecer uma tal de irmã que há muito se tinha separado do pai de ambos para ir viver com a mãe só dela, e pumbas, apaixonaram-se e borrifaram completamente no assunto de serem irmãos.
Eu também já fui namorada do neto do meu avô, mas no caso a culpa nem foi nossa. Acontece que os nossos avós também se apaixonaram e casaram (em segundas núpcias) e só depois é que nos conhecemos.

- Olá!
- Olá!
- Por acaso não tens um cigarro?
- Tenho, queres?
- Quero.
- E lume, tens?
- Tenho. Toma, só tenho fósforos.
- Vais baldar-te às aulas é? Já tocou.
- Vou. É matemática.
- Ya, fixe. Também estou sem aulas.
- Andas nesta escola?
- Ya.
- Nunca te tinha visto.
- Sou da noite.
- Ok.
(...)
- E passas onde as férias?
- Na Lagoa de Albufeira. Conheces?
- Ai é? Olha o meu avô tem lá uma casa. Já não vou lá há bués, desde puto.
- Ai é? Conheço toda a gente lá, como é que ele se chama?
- Zé.
- Zé quê?
- Zé (...).
- Tás a gozar?!
- Não estou não. Porquê, conheces o meu avô?
- Pah, chavalo, nós somos primos!!
- Ahhhhhhhh tu é que és a Uva Passa, a neta da (...)?
- Ya!
- Granda cena.
- Bora namorar?
- Bora.

É engraçado a forma, tão estranha, que a vida assume para levar a água aos moinhos que estão parados.
Não sei se é sinistro, ou se é apenas uma coincidência.
Como dizem que não há coincidências, a coisa é, só pode!, ser totalmente sinistra.









Ronit Baranga, Sculptress
Born, lives and creates in Israel. Ronit creates figurative art on the border between living and still life. Her art is displayed in museums and galleries around the world. 
http://www.ronitbaranga.com/about.html


19 de julho de 2017

VAMOS

[À escrita]


SUMÁRIO
Concurso para atribuição de bolsas criação literárias

Aviso n.º 8016/2017
Diário da República n.º 136/2017, Série II de 2017-07-17

Data de Publicação:2017-07-17
Tipo de Diploma:Aviso
Número:8016/2017
Emissor:Cultura - Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas
Páginas:14690 - 14690
Parte:C - Governo e Administração direta e indireta do Estado


1 - Torna-se público que se encontra aberto, pelo prazo de 30 (trinta) dias úteis a contar do dia seguinte à publicação do presente Aviso, o Concurso para atribuição de bolsas criação literárias.

2 - Os destinatários das bolsas são pessoas singulares, de nacionalidade portuguesa e que escrevam em português, nas modalidades de poesia, ficção narrativa, dramaturgia, banda desenhada e obras para a infância e juventude.

3 - Em 2017, o número máximo de bolsas a atribuir é de 6 anuais e 6 semestrais, com os montantes no valor de (euro) 15.000,00 e (euro) 7.500,00, respetivamente, no total de (euro) 135.000,00.

4 - A avaliação e seleção das candidaturas admitidas cabe a um júri constituído por Alice Vieira, Helena Buescu, João de Melo, João Paiva Boléo, Maria João Brilhante e Nuno Júdice.

5 - As candidaturas são apresentadas em formulário próprio que se encontra disponível na página eletrónica da DGLAB, e podem ser entregues pelos seguintes meios:

a) Pessoalmente na Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, Direção de Serviços do Livro, sita no edifício da Torre do Tombo, Alameda da Universidade, 1649-010 Lisboa, das 9:00 às 12:00 e das 13:30 às 16:30;

b) Remetidas por correio registado, com aviso de receção, expedido até ao termo do prazo fixado para o endereço referido na alínea a).

c) Por correio eletrónico, para o endereço dsl@dglab.gov.pt

6 - O Regulamento do concurso e o formulário das candidaturas encontram-se disponíveis em: http://livro.dglab.gov.pt

Contactos: E-mail - dsl@dglab.gov.pt - Tel. 210037420/21.

07 de julho de 2017. - O Diretor-Geral, Silvestre de Almeida Lacerda.

310626174


REGULAMENTO E REQUERIMENTO: 

17 de julho de 2017

EU ANTES

[Gostava muito de escrever]

Vinha aqui pedir desculpa aos leitores, por não ter aqui nada que se leia.

É infame a publicidade enganosa, tanto quanto o é um blog enganoso.
As pessoas não mudam, mas as vontades, a criatividade, e os interesses mudam muito, e quando a vida se apaga um bocadinho, ou se apaga algum bocadinho da nossa vida, acabamos por nos tornar soturnos, apáticos e sobretudo muito muito baralhados das ideias.
A instabilidade habita em mim e isso faz-me mudar o (meu) mundo.
Eu antes gostava muito de escrever; chegava a ter náuseas agradáveis quando acabava de produzir qualquer coisa engraçada, e ficava logo bem disposta para o dia todo como se tivesse passado num hospital para dar sangue - mas a certa altura fiquei muito baralhada das ideias.
Escrever até podia significar uma passagem pelo hospital mas talvez para limpar o rim preguiçoso, o que é totalmente diferente e bastante mais doloroso.

As coisas que aconteciam no dia a dia da minha vida, da comunidade, do mundo em geral, e que muito logrei em comentar, deixaram de ter a importância de outros tempos, não sei explicar bem isto mas aborreci-me de repente com a Humanidade, talvez tenha sido uma desilusão pequenina que foi crescendo à medida que as bombas foram explodindo, as crianças foram morrendo, e o meu coração apático e pouco nutrido, deixou ali de bater, incrédulo, quando percebeu que talvez todas as palavras do mundo podiam não servir para nada.

Foi quando apaguei as notícias da televisão.
Os cadernos diários aqui da casa, outrora tão catitas e interessantes, outrora tão queridos e partilhados, transformaram-se num monte de matéria de empinar, e já se sabe que isso não é musa nenhuma, nem musa que chegue.
Acabei por me afastar da escrita e dos livros e fiquei também cansada - e esta é uma verdade incontornável - de estar constantemente preocupada em ter uma opinião sobre tudo.

Eu antes gostava muito de escrever, mas atualmente encontro-me muito enjoada (e enojada) de um certo mundo.
E continuo baralhada das ideias, porque eu antes achava muito, e agora não acho nada.

Preciso passar num hospital.
Pode ser que tenha cura.

16 de julho de 2017

O NASCER DO SOL É LINDO

[É pena é ser tão cedo]

Tenho estado aqui a matutar de onde me vem, verdadeiramente, esta mania de ser forreta.
Platão definiu num dos seus - sei lá eu quantos - livros, que o Homem é um bípede implume. Coisa mais parva para um Platão dizer, mas a verdade é que além de implumes, somos antes de tudo, parvos.
Eu tenho muito isso: de ficar muito parva quando a situação implica... ficar depenada.

Metem-se agora as férias e estou felicíssima.
Tantas possibilidades, tantos dias, semanas de seguida, três!, sem meter os pés no Rule of Law, sem pensar em ações, petições e tragédias.
Mas é tudo tão caro, sobretudo em cima da hora.
Escuso de me açoitar como faziam aos mendicantes da idade média (apesar da minha histórica pobreza) só por não ter prevenido que as férias acabariam por chegar, e que eu ia ficar como sempre fico, blasé, depois de saber que umas férias em família em Paris, em agosto, podem custar-me uns belos 1 500,00€ só na meia pensão.

O que há dois dias me parecia ser a melhor ideia de todos os tempos, Paris, Oh la la, Paris, o Louvre, a Vitória da Samotrácia e Caravaggio, Versalhes, Oh la la Versalhes, e nós os três muito lindos numa fotografia em cima do móvel da sala com os dedinhos na pontinha do Obelisco de Luxor na Praça da Concórdia,  e nós os três muito alegres com os olhos espatifados contra o relógio da estação de comboio construída por Victor Laloux, e nós os três no funicular à pinha para a Basílica Sacré-Cœur de Montmartre.
E nós os três Oh la la em Paris, de França.
Que lindo nascer do sol.

Mas depois o sacana do Oh la la Paris volta-se subitamente contra mim, dá-me três lambadas e diz:
- Perdeste a tineta? Isso é para lá de caro! Queres voltar para Lisboa como administradora da massa insolvente?

Sou tão forreta.
Que virolência!

12 de julho de 2017

DO APROVEITAMENTO (Parte 1)

[Da sexualidade dos outros]

Se não vou colocar aqui a última capa da Revista Cristina no meu espaço cultural, não é porque não goste da Cristina Ferreira; também não é por achar a Cristina Ferreira uma parola da Malveira, como se a Malveira fosse por si só o berço da boçalidade ou da inconveniência tão características dos parolos - não.
Não vou  colocar aqui a capa da Revista Cristina porque sou absolutamente contra o aproveitamento da condição, inclinação, apetência sexual das minorias, ou da sexualidade no geral, para fins económicos, especialmente se os fins económicos vierem travestidos de grandes ações humanitárias de salvamento, como me pareceu ser o caso: uma Cristina Ferreira com um grande S no peito para salvar com uma revista toda a homofobia da humanidade, um abre-olhos absolutamente inédito na luta contra a discriminação.
Poupem-me.

Uma vez, já não sei em que país, o Governo decidiu legalizar a prostituição, sendo uma das regras para a legalização da profissão o pagamento de impostos por parte dos trabalhadores do sexo.
Houve uma franja que se insurgiu contra o pagamento de imposto, claro, e foi para cima do Governo com uma queixa formal que chegou aos tribunais e que tinha por base o acto de ... lenocínio.

Muito havia aqui para explorar nest post, mas eu hoje não tenho tempo.
Posso apenas dizer que estou totalmente de acordo com o meu amigo Costa Andrade [Presidente do TC] que defende que não há crime quando a prostituição não é forçada e que o crime de lenocínio simples, tal como previsto no Código Penal, viola a Constituição.

Segundo o artigo 169º do Código Penal português:
"Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos."

Mas, de acordo com o que diz a Cristina Ferreira, a capa nada tem a ver com o tema do 169.º do Código Penal Português, porque se trata naturalmente de amor puro e duro e especialmente de uma ação de combate; são pessoas que se amam e se beijam numa revista, não com o intuito  de vender exemplares da revista, mas para alertar que há amor em muitos outros lados que não apenas entre o pénis e a vagina.
Mas isso já nós todos sabemos.

10 de julho de 2017

O ÚLTIMO POST SOBRE O NOS ALIVE 2017

Em matéria de evolução andamos sempre um bocadinho desencontrados.
Pesquisadores descobriram que seres humanos modernos tiveram filhos com Neandertais sem que isso, aparentemente, causasse grande mossa na evolução da espécie, ou pelo menos que nos impedisse de evoluir no melhor sentido da palavra.
Acontece que ainda nos dura a teima, e se tivermos a capacidade de atender, reparando, a certos ajuntamentos como sejam o casamento (ou um festival de música), percebemos que a clivagem ainda se denota e podemos verificar sem grandes complexidades ou tiradas cientifico-filosofais que até em alguns casais se vê que há um que se dedica mais aos trabalhos pesados enquanto o outro pende mais para as intelectualidades. 
Certo e sabido que os intelectuais, apesar das grandes cabeças, nunca foram grandes agentes de mudança, e amiúde até empatam a malta que quer fazer as coisas.
E fazer coisas é de tudo o mais importante.

Mas o que tem  o NOS ALIVE 2017 a ver com as desigualdades que nos desunem desde há mais de 45 mil anos?
É que às vezes parece-me que os humanos modernos se cruzam ainda com os neandertais e geram uma espécie que costuma ir aos festivais de música, não para curtir a música, essa agora!,  mas para vir para as redes socais dizer mal de todas as bandas, de toda a organização, das saídas, das entradas, das bifanas, das cervejas, enfim, de tudo o que as pessoas que vão 3 dias dias seguidos para os festivais raramente percebem, e bem assim, se revoltam depois contra esse cruzamento do demo que grassa nas redes sociais à cata de clicks e visualizações.
É como se uma parte da comunidade fizesse as coisas acontecer, muito trabalho, muita dedicação, muitas horas sem dormir, para depois virem os outros, os intelectuais de pacotilha, falar mal de tudo, avacalhar e espergir o fel por cima de mais de 165 mil cabeças, só para chamar a atenção.

Há sempre gente pronta para ser inconveniente e supérflua, gente que escreve as taras que lhes passam pela cabeça como se estivessem em casa a passar a ferro. Tudo a eito, a cilindrar toda e qualquer rugosidade natural que possa aparecer no melhor pano.

Li, numa dessas "Magazines-Guru" da cidade, que as saídas do festival foram horrorosas, que obrigaram as pessoas a subir o viaduto, coitadas, 10 minutos a pé, que horror, que os Foo Fighters foram uma banda com a mania das grandezas, que os Depeche Mode foram uma desilusão, e que finalmente tudo foi uma valente trampa, porque - e isto sou eu a achar - muito provavelmente a Organização do festival se recusou a oferecer-lhe os bilhetes.

E é aqui que bate o ponto.
Mas não nos enganemos que este ponto está longe de ser um ponto final.
Com esta azia toda, mais as partilhas dos cibernautas com azia, e ainda os muitos milhares de fãs que lá foram colocar o comentário para defender as suas bandas, acho que já conseguiram arranjar dinheiro para pagar o subsídio de férias ao pessoal.

Em matéria de evolução andamos sempre um bocadinho desencontrados.
E eu acho que, definitivamente, esta gente não deve ter estado no mesmo festival que eu.

7 de julho de 2017

A CAIR

[Sobretudo no esquecimento.]

É uma vertigem igual à que senti quando subi aos píncaros da Catedral de Colónia (Kölner Dom). Uma vertigem negra, gótica, cava. A certa altura não consegui meter um pé a seguir ao outro, e sentei-me no chão, indiferente aos que davam passos decididos em direção ao céu.
A vertigem é mais profunda quanto mais alta é a igreja.
É um belo pensamento se o adaptarmos a Pedrogão.

Ainda não falei sobre Pedrogão.
Ainda não falei sobre culpas e desvarios, sobre aproveitamentos e desperdícios, sobre a temática da caridade barata - um tema que me é tão caro - ou sobre como um país consegue ser ao mesmo tempo tão pobre (em liderança) e tão rico (em solidariedade).
Li na página do Pedro Boucherie Mendes que, e passo a citar, 'a terrível e inominável mortandade que aconteceu por causa do fogo comoveu o país e fez com que muita gente arregaçasse as mangas e… aproveitasse para dar uma limpeza nos seus roupeiros.'

É uma vertigem voraz, esta em torno do desperdício de doações, sobretudo de roupa usada e calçado sem solas, que as pessoas teimam muito em enviar em catadupa para as catástrofes, para os terramotos, para as secas, para todo o lado em que lhe pareça que as pessoas estão nuas, ou descalças.
Na TSF, a jornalista Bárbara Baldaia diz que solidariedade não é limpar armários, e fala de um vestido de noiva dentro de uma caixa que chegou a Pedrogão. 
Uma metáfora para a alguém que possivelmente ardeu com o casamento, ou tem uma visão muito romântica dos acontecimentos.

Não há ninguém quem nos ensine a solidariedade, como não há ninguém que nos ensine sobre incêndios, ou sobre o mar. Somos constantemente colocados à prova, nós, o povo português, para agirmos em situações para as quais não estamos minimamente preparados. 
Lá vai o marido obeso, depois de comer uma valente feijoada, salvar a mulher que não sabe nadar mas voltou as costas à onda. E lá morrerem os dois, muito agarradinhos, um ao pescoço do outro, como morrem os velhinhos, muito agarradinhos, queimados pelas chamas.

Não quero esmiuçar a questão da culpa porque de resto somos todos culpados.
Os enormes eucaliptos que ladearam desde sempre a estrada que ia dar ao monte da minha bisavó, lá no Serro da Bruta, na remota Corte-Brique, nunca arderam. Lá passaram um sem números de carroças puxadas por bestas, burras e mulas, amigos que lá iam ajudar na matança do porco, ou na apanha da cortiça, os filhos, as noras e depois os netos, os amigos dos netos, as mulheres dos netos, um sem número de cabeças, também de gado, que por ali pastavam e viviam sem sobressaltos de maior, a não ser uma outra trovoada, que vinha quase sempre do lado espanhol.
Ardeu-lhe muitas vezes o coração, porque teve ferventes paixões, mas nunca lhe arderam as árvores, a casa, ou os animais.

Por outro lado ninguém esquece a caridade dos outros, quero dizer, os mortos esquecem, mas os que ficam vivos não podem senão viver com essa amalgama na cabeça, porque a caridade é uma amálgama viva de emoções misturada com os trapos velhos dos caridosos.

«Quando a minha família e mais umas centenas de milhar vieram das ex colónias sem nada, repito, sem nada, foram muitas as coisas que nos deram. Muitas dessas coisas não davam para vestir. Mas tudo gentilmente agradecemos e se não dava para usar dava para limpar o pó ou para capacho de limpar os pés, porque nada tínhamos. Foi desse lixo, que a minha mãe fez o meu vestido de baptismo. A necessidade aguça o engenho e a arte, para quem não sabe.» (Américo Varatojo)

Não posso concordar mais com o Pedro Boucherie Mendes quando ele diz que a “Caridade” tem de se profissionalizar de uma vez por todas. Não é possível ajudar ninguém, quando num só dia se recolhe mais de um milhão de euros para uma causa sobre a qual ainda ninguém sabe a causa. Vai ser um deboche esse dinheiro nas mãos erradas, como é um deboche a criatura que limpa armários para fingir a compaixão, enviando para Pedrógão os seus velhinhos trajes de Carnaval.

Pedrogão será mais um ponto negro no meio do nada, um asilo de lixo, um exemplo cabal daquilo que actualmente se chama de 'second disaster donations'.
 A cair.
Sobretudo no esquecimento.
Dos que nada fazem para nos ensinar.
A caridade.

6 de julho de 2017

ACONTECEU

Há tantas coisas na nossa vida que ficaram por acontecer.
Lembro-me bem de uma noite, no Lux, andava eu numa fase absolutamente alvoraçada, a tentar trucidar o luto tremendamente e absolutamente doloroso do meu melhor amigo e namorado que morria todos os dias sem se despedir, que morria em todo o lado, a qualquer hora, numa casa de banho, num restaurante, no caminho para a faculdade, e também no Lux, durante muitos anos depois da sua efetiva morte, e de ter a plena certeza de que, nessa noite, o fio que me ligou à vida foi um fio de aranha, elástico, resiliente, feito para aguentar até a mais alvoraçada má-sorte, que podia muito bem ter ali acontecido.
Outra vez, novamente alvoraçada para chegar a casa, ou para sair de alguma casa, cantava muito alto uma canção dos Duran Duran, que passava no meu Fiat Punto 6 Speed - que eu nunca soube andar devagar - e, agarrada a um cigarro, com a cabeça na melodia, fiz uma espécie de ultrapassagem dentro de um túnel e só me apercebi que estava a guiar um automóvel quando um camião que se apresentava de frente, com uma carga imensa de eucaliptos, me acendeu duas vezes os máximos, apitou na linha, e optou por não me matar.
Há tantas coisas na nossa vida que ficaram por acontecer.
Tenho hoje um dos meus melhores amigos deitado numa cama de hospital, e não posso garantir que o fio que o liga à vida é de aranha.
Gostava que a vida fosse gentil e nos permitisse voltar atrás, muito atrás, para limpar os cacos que a morte nos traz.
Que bom seria levar os nosso mortos pela mão e mostrar-lhes todas as coisas novas que foram acontecendo na sua ausência: os jardins tão arranjados, a nova rotunda de Odivelas, o Metro que já chega à Pontinha, os olhos azuis, tão lindos, da minha filha...
Por tudo isto que não aconteceu comigo, por todos os fios que me prendem à vida, fios feitos de pessoas, de amigos, de alegrias, de dias de sol, de pedaladas, jantaradas, leituras, ternuras, e sorte, sou grata.
Mas não sou imortal.
Há de haver um dia que nada ficará por acontecer.

FRIDA KAHLO

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderon, F(e)rida, o seu nome diz tudo.
Nasceu no México, no dia de hoje, em 1907. 
Judia primeiro, pintora depois, foi uma das mais importantes artistas, revoluionária, comunista, do século XX.
As feridas de Frida tornaram-na uma mulher de sentimentos incomensuravelmente soberbos. Posso até dizer que a tragédia que foi desde sempre a sua vida, foi o motor da sua arte, e o nosso deleite.
“Pinto a mim mesma porque estou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”.
Pintou ao todo 55 auto retratos, a grande maioria dos quais deitada numa cama de hospital, olhando para um espelho, enquanto recuperava de um infame acidente de autocarro que quase a matou.
Frida, a pintora que caminhava com uma perna mais fina que a outra, e um pé atrofiado devido a uma infantil [6 anos] poliomielite, foi afinal a primeira pintora mexicana que teve um de seus quadros expostos no Museu do Louvre. Um ano antes da sua morte.

“Espero a partida com alegria…e espero nunca mais voltar…Frida.”


3 de julho de 2017

DA GRATIDÃO

Parece que de vez em quando devemos ficar gratos à vida porque nos permite, volta e meia, dar uma volta completa, alterar a paisagem, mudar de horizontes.
Soube, e agora sei, com muita pena minha, que há pessoas que vivem uma vida inteira, e depois morrem, sempre com o olhar tropeçando nas mesmas coisas, nos mesmos quadros, pendurados nas mesmas paredes, de uma mesma casa, de um inalterável bairro. E essas pessoas são gratas também, por esta constância da vida, por esta ausência de sobressalto, de surpresa, de afrontamento e de paixão.
Manter o mesmo quadro é evitar a canseira da migração, a canseira de reunir a família e os amigos, os inimigos e os desconhecidos, e colocá-los - a todos sem exceção - em fila indiana à procura de outras paragens, de outras pastagens.
O difícil de sermos totalmente gratos a esta força centrífuga da vida, que nos faz mudar de quadro, ou de prego, é no fundo as externalidades dessa mudança, o facto de termos de arrancar todas as flores do canteiro, as roseiras e as daninhas, as orquídeas e os cactos, e seguir caminho deixando apenas um vaso de terra seca que não soube, não sabe, e jamais saberá, cumprir o seu objetivo último.

Penso muito nisto quando vejo tudo aquilo que me apoquenta por estes dias.
Nada me importam as pessoas que souberam arrancar a vida daquele prego espetado naquela parede.
Sou até muito grata [à vida delas] por terem conseguido a proeza de uma alteração.
Custa-me muito mais as pessoas que sabendo exatamente qual o caminho a seguir, se quedam em vasos caducos, rodeados de pessoas daninhas, que picam muito mais do que a fome.

Gostava que a minha vida saísse do prego.
Não há maneira de lhe agradecer um terramoto.
Porque as paredes não caem sozinhas.