24 de maio de 2017

O MEU FILHO CHUMBOU – E AGORA?

No final de mais um ano escolar, alunos, escola e famílias, experimentam aquele que é talvez o período do ano mais complexo e stressante de todos.

É na parte final do percurso escolar que uma fatia significativa de vidas se decide, ao mesmo tempo que os professores desesperam para tomar a ‘grande decisão’ que em primeira instância lhes altera os objectivos profissionais (e pessoais) e em última instância altera a vida e o futuro de todos os alunos. 
Reter ou não reter é um tema tabu entre a comunidade educativa, e não o é menos entre a comunidade de pais que enfrenta anualmente essa possibilidade, sem sequer poder intervir eficazmente para a pergunta que se impõe: a repetição de um ano é ou não benéfica para a aprendizagem do aluno, para a melhoria escolar do aluno, para o aumento do interesse do aluno?

Nos últimos anos, e devido às constantes alterações [políticas] no sistema de ensino português, temos assistido a uma corrente fortíssima que alardeia o facilitismo como causa da suposta diminuição da qualidade dos jovens que saem para o mercado de trabalho. Atribui-se, portanto, a degradação dos ‘standards’ intelectuais da comunidade escolar (e aqui se vê o quanto a escola permanece parada no tempo), ao facto de alguns professores defenderem e seguirem um caminho que traça (e bem) a ideia de que os alunos retidos - especialmente nos primeiros anos de escolaridade - não só não melhoram a disciplina ou o método de estudo, não melhoram os resultados após mais um ano o mesmo ano, como são também mais propensos a novas retenções, ficando mais exposto aos danos irreversíveis da desmotivação e do abandono escolar. 

No fundo, para aqueles que defendem que a escola deve ter uma atitude punitiva do mau resultado escolar, entende também que um professor que ‘facilita’ a não punição, que evita a emergência de alunos de idades superiores em classes etárias mais baixas (tendentes ao bullying e favorecendo a indisciplina), que impedem o prosseguimento do aluno na vida escolar e pessoal, na sua turma, com os seus pares, mas obviamente com redobrada atenção e apoio no ano seguinte - com um plano de recuperação digno do nome - é um professor altamente injusto para com os alunos que têm efetivo aproveitamento escolar, e enaltecedor dos alunos não cumpridores.

Custa-me muito a crer que um aluno que não consiga empinar - e este é o termo para a quantidade absurda de matéria que os alunos têm de verter em cada teste - uma caterva de datas que podem ir desde a Batalha de Cavadonga até D. Dinis, passando pela D. Urraca e os amores de perdição por um galego, de D. Teresa, possam ficar retidos, caso a coisa não corra igualmente bem a inglês e a matemática.

Quero com isto dizer que não é mais possível que um aluno que mostre dificuldades no percurso escolar durante o ano, ou que desde cedo denote uma parca consolidação dos conhecimentos transmitidos pelos professores, possa ser surpreendido pelo chumbo no final do ano, às vezes injustamente, quando o que interessa é pesar numa balança que benefícios trará ao aluno ficar retido mais um ano, por um lado, e se esses benefícios lhe trarão efetivamente vantagem notória na vida futura, se realmente faz toda a diferença na vida daquele ser humano saber aquela matéria específica, ou se por outro lado, poderemos tentar mais um ano, para ver se com mais maturidade, incutindo-lhe naturalmente essa responsabilidade, essa oportunidade para ele tentar de novo, na mesma turma, ele recupere, ele se regenere, ele aprenda com mais animo.  
Não podemos continuar a desenvolver as mesmíssimas técnicas que antigamente se encontravam nas sebentas escolares, porque obviamente a frase ‘os pensamentos voam e as palavras vão a pé’, é uma bela analogia para esta outra que inventei agora: as diversas formas de conhecimento voam, e o ensino tradicional vai a pé.

Enquadrando todos estes aspetos, verifica-se que a cultura de retenção, ou seja, a “crença comum de que a repetição de um ano é benéfica para a aprendizagem dos alunos”, está ainda muito patente na sociedade portuguesa, em particular na cultura escolar de primeiro e segundo ciclo. Com efeito, é recorrente a ideia da retenção como sinónimo de exigência, qualidade das aprendizagens em oposição a um sistema “facilitista”. No entanto, se bem que a transição responsável de alunos com baixo rendimento escolar possa acarretar uma maior exigência por parte do sistema escolar e mormente dos professores, pois que pressupõe, por parte de todos os intervenientes, um esforço acrescido no desenvolvimento de estratégias e medidas de apoio e reforço das aprendizagens, é, na minha opinião, e na grande maioria dos casos, preferível à retenção e ao trauma que isso trás para a criança imatura que é castigada pela sua própria ineficiência ou a ineficiência dos pais em casa, incapazes de ajudar a ultrapassar as dificuldades na matéria que os professores não conseguem transmitir em sala de aula.
E toda a componente social que daí advém, a tristeza de ser repetente, de ficar para trás, de perder os amigos com quem muitas das vezes tão dificilmente estabeceu uma ligação, e de assumir uma incapacidade que muitas vezes nem é de raciocínio, e somente de memória.
Custa horrores a um pai e a um filho, depois de ano horríbilis, o tempo que perdemos com eles, o dinheiro que gastamos, o que deixamos de viver para os acompanhar, o medo de que falhem, e depois chegar ao fim de tudo isto que é tão mais tão tanto! e ver um filho ficar retido, chumbar. 

Os justiceiros sociais, com soluções pessoais para os problemas do todo, têm um peso enorme na sociedade escolar (e na política) portuguesa, e tardará até que aquilo que individualmente se pensa de certo assunto, possa deixar de dominar sobre aquilo que é efetivamente correto. Enquanto alguns professores, pessoalmente, admitem encharcar as crianças de teoria cansativa, de testes imensos e complicados, de toneladas de TPC que os pais têm tempo de fazer - ou não, desmotivando a cada dia os alunos, retendo-os, muitas vezes por não serem capazes de criarem o interesse suficiente para que passem na sua disciplina, outros há que perceberam que não é por aí. O trabalho tão importante dos professores não pode ter como objetivo chegar ao fim do manual, à página 225 da sebenta.

Ainda ontem, eram já altas horas da madrugada, quando explicava à minha filha de que forma se colocavam espermatozóides numa lamela para se verem no microscópio, porque a professora esteve muito empenhada em explicar aos alunos a parte mecânica e a parte óptica do microscópio composto, os 12 ou 13 componentes da maravilhosa invenção - que todos têm de saber de cor, os pobrezinhos - mas esqueceu-se de explicar o mais importante.

E fui eu, com a minha pachorra de Jó, que expliquei à minha filha que para se colocarem espermatozóides numa lamela, não é só escrever no compêndio de 225 folhas que foi o Senhor A ou B quem os consegui ver primeiro. 

1 comentário:

  1. Tão bom!!! Lembrei-me exactamente das minhas aulas, em que tive de decorar as partes do microscópio e só pensava "mas para que é que serve esta merda", sempre odiei ter de decorar, ainda por cima algo que não iria servir para nada. Enfim.

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